sexta-feira, 25 de junho de 2010

Contrato, consciência e tecnologia: três abordagens para a civilização

O presente estudo é um ensaio reflexivo a respeito da civilização contemporânea. Analisa três abordagens para tal: a contratualista de Hobbes, Locke e Rousseau; a da análise psicológica da consciência, Freud e Marcuse; e a do papel da tecnologia, Lévy. Elabora um diálogo entre estas diversas maneiras de considerar o processo civilizatório, desde a iniciação até as possibilidades futuras. Por fim, avalia os pontos de correspondência e relaciona as ligações entre tais visões para, portanto, ser possível classificá-los em: pessimistas/totalitários, Hobbes e Freud; racionalistas/ideológicos, Locke pela via iluminista e Marcuse pela crítica; e cândidos/românticos, Rousseau pela via naturalista e Lévy pela tecnológica.

INTRODUÇÃO

A civilização contemporânea passa por um intenso processo de mediação das relações sociais por meio da disseminação e do uso das tecnologias digitais no cotidiano das pessoas. Surgem novas formas de organizações coletivas que parecem destoar dos modelos conhecidos, porém sem romper com as lógicas hegemônicas pré-existentes. Tudo isso implica na dificuldade para se elaborar um ensaio sobre o assunto sem incorrer no risco de ser imprudente e esquecer abordagens fundamentais. Por outro lado, tais dificuldades não devem se apresentar como impedimento para um estudo preliminar, desde que sejam elencadas de imediato. Em primeiro lugar, dentre a vasta quantidade e a significativa qualidade dos autores que trataram do tema - cada qual ao seu modo - são abordados aqui, especialmente, as visões contratualistas da civilização, pelas óticas de Hobbes, Locke e Rousseau, em correspondência - ou em contrapeso – com a análise elaborada por Freud e suas expansões preparadas por Marcuse. Não se trata de uma análise minuciosa do pensamento dos autores que, dada a relevância dos nomes, mereceriam um estudo aprofundado de forma independente. Também, ocorreu a necessidade de escolher quais obras consultar em meio a vasta literatura existente de autoria e, além disso, sobre o pensamento de cada um deles. Porém, dado o caráter preliminar do estudo, para a base do trabalho foi realizada a escolha de textos que parecem expressar as intenções teóricas de cada um no que diz respeito ao tema analisado. Para convencionar: a abordagem do contrato social é tipicamente iluminista e que serve de base para a formação do estado liberal, bem como suas facções mais libertárias. A abordagem pela consciência é aquela que se inicia com a expansão do freudismo para um entendimento social. Outro fator a ser observado, e aí reside o objetivo maior do trabalho, é a contextualização das análises levantadas anteriormente em harmonia com uma visão da sociedade contemporânea ajustada pela disseminação das novas tecnologias de informação e comunicação no cotidiano das pessoas, onde, finalmente, emergem novos modelos de organização: um ambiente seguramente diferente do que fora alvo das teorizações do contrato ou do pessimismo civilizatório de Freud, depois expandido e relativizado por Marcuse. Para tal tarefa é utilizada a fundamentação teórica do filósofo Pierre Lévy, em especial sua análise das tecnologias da inteligência humana que se encontrariam na atual fase da cibercultura.

O trabalho segue exatamente a seqüência que fora descrita acima: começa com a abordagem contratualista, passa para a abordagem psicológica e finaliza com uma abordagem tecnológica para a civilização. No decorrer desse caminho são realizadas reflexões de possíveis conexões entre as visões para, por fim, tornar admissível a elaboração de qualquer consideração – que quase nunca é final.
Um último elemento que precisa ser esclarecido é o uso dos termos civilização e cultura. Assim como Freud, o trabalho não distingue civilização de cultura. Se houver a necessidade de realizar alguma distinção entre os conceitos, é possível tomá-los, grosso modo, da seguinte forma: cultura é todo o complexo metabiológico criado pelo homem e civilização é um estágio da cultura que permeia todas as abordagens selecionadas.

A abordagem por meio do contrato (coletivo)

A teorização sobre o contrato social parte do pressuposto que houve um momento na história da humanidade onde se instituiu a civilização por meio de um mecanismo artificial de renúncia aos direitos individuais em detrimento de uma unidade coletiva. Possuem em comum o intento de justificar algum preceito moral que fosse responsável pela congregação coletiva de forma pacífica e progressista. Tal abordagem difere de autor para autor com uma idéia de liberdade, embora nem mesmo o mais libertário de todos, Rousseau, tenha conseguido romper totalmente com os elementos de dominação.
Thomas Hobbes (1588-1679) defendeu a tese que os homens só poderiam viver em paz caso se submetessem a um poder centralizado e absoluto. Tal noção é resultado de suas reflexões acerca das Leis da natureza e das implicações que elas causam. Fundamentalmente, propõe que, em estado de natureza, o homem tem direito a tudo, pode realizar o que bem quiser e usufruir de tudo que puder adquirir. Entretanto, apesar do direito natural que possui, não poderia usufruir desse “tudo”, pois seu vizinho possui igualdade de direito e poder e poderá pretender a mesma coisa que ele. Por conseguinte, tal relação resultaria num conflito entre eles e transformaria o estado de natureza em estado de guerra. Segundo o autor,
“Os homens não podem esperar uma conservação durável se permanecerem no estado de natureza, ou seja, de guerra, e isto se deve à igualdade de poder que existe entre eles, e a outras faculdades de que são dotados. Conseqüentemente o ditado da reta razão (da lei da natureza) é que busquemos a paz sempre que houver alguma esperança de a obter e, se não houver nenhuma, que estejamos preparados para a guerra.” (HOBBES, 2004, p.38)

Nesse sentido, mostra sua visão sobre o que chamará de a primeira lei natural, ou seja, a busca pela paz sempre que for possível obtê-la, para tanto os direitos de todos sobre tudo não deve ser retido. Todavia, alguns deles devem ser transferidos ou renunciados e tal ato de transferência mútua de direitos é chamado de contrato. Em seqüência à primeira lei natural, a relativa à paz, Hobbes esboça outras dezenove, todas elas com a finalidade de garantir a ordem gerada por um pacto social regido por fundamentos imutáveis e eternos que, segundo o autor, nada mais são do que a legítima expressão da moralidade regida pela razão. Para o autor, é a lei natural que ordena o exercício de bons modos e da virtude como caminho para a paz, sendo ela, por conseguinte, uma lei moral. Portanto, a visão hobbesiana do contrato implicará na tentativa de estabelecer os preceitos morais que devem nortear as ações dos indivíduos frente ao complexo cultural. Tal moral deveria ser a garantia para a perpetuação das organizações formadas espontaneamente pelos homens em sociedade, entretanto deveria ser garantida por meio do absolutismo monárquico.
John Locke (1632-1704) apresenta uma visão um pouco diferente da anterior. Segundo o autor, o homem no estado de natureza tem a liberdade de exercer dois poderes. O primeiro é fazer o que julgar necessário para a própria preservação e a dos outros, dentro dos limites da lei natural e o segundo é de punir os crimes cometidos contra essa lei. “E não fosse a corrupção e o vício de homens degenerados, não haveria a necessidade de nenhuma outra, nem seria preciso que os homens se afastassem desta grande comunidade natural e, por acordos e convenções, se associassem em grupos menores e separados.” (LOCKE, 2006, p. 92). Assim sendo, a civilização surge quando se unem e abrem mão dos dois direitos e os delegam a um corpo governante. A principal diferença entre as duas visões está no fato de Locke, ao contrário de Hobbes, postular que o homem nasce livre na mesma medida que nasce racional; isso acarreta na visão final de um governo oriundo da conjunção da capacidade racional de todos os indivíduos. Portanto, o homem em natureza utiliza sua capacidade racional para estabelecer os contratos que proporcionam o bem-estar. Locke exerceu forte influência para a consolidação dos ideais iluministas, assim como do modelo de estado liberal, isso também engloba sua defesa em favor da propriedade privada como um direito natural e, conseqüentemente, defesa do direito da dominação a priori. Apesar da liberdade para se utilizarem a racionalidade, haveria antes de tudo uma estruturação societária irracional que perpetuaria e justificaria relações que extrapolam a mesma lógica inicial da liberdade racional.
Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) é o mais romântico dentre os contratualistas examinados. Segundo o autor, o direito individual é sempre subordinado ao direito da comunidade sobre todos, pois sem isso não existiria solidez no laço social. O pacto social, ao invés de destruir a igualdade natural, “substitui, ao contrário, por uma igualdade moral e legítima toda desigualdade física, que entre os homens lançara a natureza, homens que podendo ser semelhantes na força, ou no engenho, tornam-se todos iguais por convenção ou por direito.” (ROUSSEAU, 2006, p. 35). Tal pacto social livremente estabelecido daria ao corpo político poder sobre os elementos que compõem a sociedade. Contudo, garantiria a liberdade e a igualdade entre seus membros, na medida em que todos se obrigam das mesmas condições e usufruem dos mesmos direitos. De acordo com Piozzi (2006), a doutrina de Rousseau estabelece um modelo social onde a ordem não é o resultado instável de um pacto de interesses, mas nasce da confluência de todos os interesses em torno da vontade geral, tendo como conseqüência o enfraquecimento dos instrumentos coercitivos do estado. Deste modo, o contrato rousseaniano assinalaria o fim das relações marcadas por puro interesse individual (paz ou bem-estar) para focar a necessidade de uma renovação moral do homem moderno; a liberdade natural seria renunciada em prol de uma liberdade civil, onde cada um colocaria sua individualidade e poder sob a direção da vontade geral para receber em troca o potencial do todo. Enfim, a crítica que restaria à Rousseau se apresenta no fato do sentimentalismo excessivo que culmina numa teoria idealizada, romântica e com pouco ajuntamento às relações materiais. Por outro lado, tal abordagem serviu de base para importantes movimentos de busca pela liberdade, tais como: as revoluções liberais, o marxismo e o anarquismo.
As análises desses três autores refletem alguns dos principais marcos teóricos para a abordagem contratualista da civilização. Enquanto Hobbes, ao tentar defender o absolutismo, argumenta embasado no estado natural de guerra, Locke prefere a via racional com alguns elementos individualistas e, finalmente, Rousseau acredita na bondade natural que é predisposta à civilização. Verifica-se, portanto, o momento da justificação da dominação: pelo monarca, em Hobbes e pelo burguês racional, em Locke. Já, em Rousseau abrem-se as portas para uma visão humana inteiramente libertária, porém, ainda, necessitando mais amadurecimento. Postas as principais noções do contrato social, o trabalho segue para a abordagem fundamentada nas teorias cunhadas por Freud e acrescidas de algumas considerações de Marcuse.

A abordagem pela análise da consciência (indivíduo)

As observações anteriores se constroem sobre uma base de axiomas que não são justificados pelos autores: o estado natural de guerra, a coesão pela razão e a bondade natural não são objeto de maiores justificativas que com base na psicologia humana. A análise psicológica para a civilização é considerada, no presente trabalho, a partir dos textos de Freud: “O futuro de uma ilusão” (1996A) e “O mal-estar na civilização” (1996B). Neles o autor se esforça para demonstrar a contradição existente entre a civilização e a liberdade instintiva das pessoas que a compõem. Sendo o processo civilizatório o responsável pela supressão da liberdade humana e causador de inúmeras angústias que, dentre as possíveis saídas, levam ao surgimento de ilusões coletivas, sendo a religião o principal exemplo.
Sigmund Freud (1856-1939) empreendeu suas faculdades intelectuais no intuito de extrapolar sua teoria psicanalítica para uma análise da sociedade, tal atividade, por vezes contestada, parece se apresentar de forma preliminar, entretanto não deixa de ser relevante. Mais tarde, Rouanet (1986) evidenciará a importância do freudismo – em conjunto com o marxismo – para a estruturação da Teoria Crítica, no interior da Escola de Frankfurt, o que corrobora o potencial das teorizações de Freud para uma análise mais profunda do processo civilizatório. De acordo com Marcuse (1975), Freud indica que a civilização remonta sua origem num processo de culpa e, além disso, propõe uma correlação entre o progresso e tal sentimento de culpa. Para tanto, a culpa teria raiz na origem do “complexo de Édipo” quando o pai primitivo é assassinado pelo conjunto de irmãos que, ao satisfazerem seu instinto agressivo, sentem-se culpados em virtude do amor ao pai; em função disso surge uma restrição que impede a realização do feito noutras ocasiões. “O homem se abstêm do feito; mas, de geração para geração, o impulso agressivo revive dirigido contra o pai e seus sucessores, e, de geração para geração, a agressão precisa ser inibida de novo.” (MARCUSE, 1975, p. 83). A renúncia se converte em consciência; o pai é substituído e multiplicado pelas instituições, assim como o impulso agressivo contra ele; a sociedade cria defesas para aumentar o sentimento de culpa e conter a agressividade. Nesse sentido, ao ler Freud é mais fácil concordar com as noções de Hobbes do que com o modelo romântico apontado por Rousseau ou, até mesmo, a visão racionalista de Locke: o homem poderia passar de um estado sem civilização desde que sofra alguma privação por parte de um poder externo, não é em função de sua bondade natural ou de uma escolha racional, pois a opressão cultural advém antes da oportunidade de racionalizar e,certamente, condiciona os mecanismos racionais. Tal raciocínio fica evidente na seguinte passagem:
“(...) é que os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é, para eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho se compensação, utilizá-lo sexualmente sem seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo.” (FREUD, 1996B, p.116)

A passagem anterior pode ser resumida pela frase de Plauto: Homo homini lúpus ou o homem é o lobo do homem. O interessante é verificar a mesma metáfora presente na obra dos dois autores, Hobbes e Freud. Enquanto o primeiro a usa para defender o absolutismo monárquico oriundo da vontade de deus, o segundo parece usá-la para defender um absolutismo científico fruto da vontade positiva da razão. Finalmente, Freud irá concluir que o sentimento de culpa é a problema mais importante ao desenvolvimento da civilização e vem resultar num alto preço pago pelo avanço civilizatório, pois resulta numa perda da felicidade pela intensificação da culpa. Como alternativa a civilização cria suas ilusões para se defender das forças naturais e das suas próprias contradições que já foram expostas anteriormente. (FREUD, 1996A) Irá denominar de ilusão quando a realização de um desejo é o fator relevante em sua motivação, desprezando as relações com a realidade. A ilusão não precisaria se submeter à verificação. Daí, portanto, a contínuo mal-estar na civilização, que só faz aumentar com seu desenvolvimento e culmina na criação de neuroses coletivas para ser refreado.
Em complemento, dentre outros autores que utilizaram o arcabouço das teorias psicanalíticas de Freud para compreender o processo civilizatório, destaca-se Herbert Marcuse (1898 – 1979), intelectual pertencente à Escola de Frankfurt. Marcuse (1973) que assinalou a unidimensionalidade da sociedade industrial que ocorrera sob a égide de uma falsa sensação de liberdade, uma liberdade controlada que se manifestava nos elementos racionais por meio da restrição e da manipulação das necessidades individuais. Tal concepção coincide e é influenciada pela análise elaborada por Adorno e Horkheimer (1985) onde verificam que o processo de racionalização da civilização havia, ele próprio, se tornado semelhante à mitificação que combatia, em outras palavras, a ânsia pela racionalização da civilização defendida pelo projeto iluminista - da qual Freud (1996A) parece concordar quando defende a ciência em contraposição à ilusão religiosa – havia culminado na mitificação da razão e, por conseguinte, agora com Marcuse, numa sociedade unidimensional dominada pela racionalidade instrumentalizada onde os meios não mais questionam os fins. Toda essa transformação seria explicitada no desenvolvimento científico e na automatização dos processos de trabalho e funcionaria idêntico a um catalisador – “explosivo ou não-explosivo” (MARCUSE, 1973) - na base material da civilização. De acordo com o autor,
“A automatização, ao se tornar o próprio processo de produção material, revolucionaria a sociedade inteira. O esbulho da força de trabalho humano, levado à perfeição, destruiria a forma espoliada pelo rompimento dos laços que atam o indivíduo à máquina – o mecanismo pelo qual o seu próprio trabalho o escraviza. A automatização completa na esfera da necessidade abriria a dimensão do tempo livre como aquela em que a existência privada e social do homem constituiria ela própria. Isso seria a transcendência histórica rumo a uma nova civilização.” (MARCUSE, 1973, p. 53)

Entretanto, a nova civilização não se apresentaria justamente em função de ter se tornado unidimensional ou, de certa forma, uma sociedade mitificada pela racionalização instrumental. Se, por um lado, a instrumentalização permitiria o fim da dominação técnica, por outro, se apresentou como responsável pelo desaparecimento do antagonismo entre cultura e civilização, onde a cultura não é abolida, mas incorporada à esfera da civilização (ROUANET, 1986). A falsa consciência ou a dominação do processo civilizatório “não estaria mais radicada no mundo das idéias, mas na própria realidade do aparelho produtivo, acionado pela ciência e pela tecnologia.” (ROUANET, 1986, p.215). Por fim, Marcuse irá utilizar as categorias freudianas da pulsão de vida e pulsão de morte para vislumbrar uma ordem futura, onde uma nova consciência seja capaz de remover o “véu tecnológico” e surgir uma nova face de civilização sem dominação. (ROUANET, 1986)
Embora com algum esforço, é possível relacionar as análises de Marcuse com a proposta de civilização de Locke. É claro que estão em lados opostos no que concerne à ideologia, entretanto ainda sim estão dentro de alguma ideologia e, por isso, apresentariam ligações. Locke vislumbra uma civilização que surge da capacidade racional dos indivíduos para estabelecerem contratos para o seu bem-estar. Marcuse vislumbra uma civilização unidimensional mediada pela técnica e pela ciência. Em ambos os casos há o foco no elemento racionalizante como argamassa da civilização. Enquanto Locke o considera como condição necessária e suficiente para uma sociedade justa, Marcuse o denuncia como instrumento de dominação e transcendência. O que é importante ressaltar é ambos reconhecem a importância da técnica e da ciência como elementos para a coesão da civilização, ainda que como artifício para a dominação. Essas considerações abrirão caminho para uma apreciação focada no papel da tecnologia, em especial nas considerações existentes nos trabalhos do filósofo Pierre Lévy.

A abordagem da tecnologia (estruturacionismo)

Tal concepção parece se preocupar mais com as implicações da tecnologia para o projeto civilizatório que com as contribuições do avanço tecnológico para que este de fato ocorresse. A tecnologia se desenvolve em conjunto com a civilização, não cabe aqui tergiversar se há um elemento condicionante, pois parecem ser partes de um mesmo conjunto, o complexo cultural. Pierre Lévy iniciará suas reflexões acerca do papel das tecnologias que denominará tecnologias da inteligência. Propõe que, no atual contexto, a técnica adquire dimensão fundamental para a transformação da civilização por ela mesma. Com um raciocínio similar ao de Marcuse (1973, 1975), porém sem qualquer diálogo aparente, Lévy (1993, 1997) aponta que a realidade cada vez mais evidente da influência das relações tecno-econômicas na vida social levam ao reconhecimento da técnica como um dos mais importantes temas filosóficos e políticos da atualidade.
Com base nessa hipótese propõe que a humanidade possui, quanto à sua universalidade, três grandes etapas em sua história: a das pequenas sociedades fechadas, de cultura oral, que vivem uma totalidade cultural sem universalidade, a das sociedades civilizadas, imperialistas, usuárias da escrita, que fizeram surgir um universal totalizante, por último, a da cibercultura, correspondendo à globalização concreta das sociedades, que inventa um universal sem totalidade. Universal pela presença virtual da humanidade para si mesma e não total pela não existência de um fechamento semântico abrangente. Contudo, é preciso ressaltar que as duas últimas etapas não eliminam a anterior: relativizam-na, acrescentando-lhe mais dimensões. (LÉVY, 1999). Não é difícil encontrar relações entre os autores anteriores e as categorias de Lévy. A sociedade civilizada a que se refere é a sociedade moderna; a sociedade da cibercultura é um modelo em formação e que somente estará completa quando todas as pessoas estiverem inseridas e se relacionando em ambiente digital. Ora, talvez seja esse o momento que Marcuse (1975) preconizou como de possibilidade de revolução social, desde que o véu tecnológico seja rompido. Quem sabe é daí que se origina o conceito otimista que Lévy (1996, 1999, 2002) atribui ao ciberespaço, sobretudo quando o apresenta como um ambiente onde ocorre a manifestação de uma inteligência coletiva, fruto dos inter-relacionamentos estabelecidos entre os homens, entretanto mediadas e potencializadas pelas máquinas e pelos sistemas telemáticos. No limite só haveria hoje um único computador, mas seria impossível traçar seus limites ou fixar seu contorno, dada a infinidades de interconexões. Entretanto, o ciberespaço “não é uma infra-estrutura técnica particular de telecomunicação, mas certa forma de usar as infra-estruturas existentes, por mais imperfeitas e desiguais que sejam e objetiva, por meio de qualquer tipo de ligações físicas, um tipo particular de relação entre as pessoas.” (LEVY, 1999, p.124). A essência do ciberespaço encontrar-se-ia nas relações que este possibilita e não nos aparatos que o compõem, os equipamentos seriam somente interfaces que potencializam as atividades da inteligência humana.
O candismo de Lévy frente ao novo contexto tecnológico não para por aí. Para o autor, o ciberespaço proporciona propriedades novas, que fazem dele um valioso instrumento de coordenação não hierárquica, de sinergização rápida das inteligências, de troca de conhecimentos, de navegação nos saberes e da autocriação deliberada de coletivos inteligentes. Ainda, permite que os seres humanos conjuguem suas imaginações e inteligências a serviço do desenvolvimento e da emancipação das pessoas é o melhor uso possível das tecnologias digitais. Essa abordagem teria diversas aplicações, dentre as quais:
• econômicas: para o advento de uma economia dos conhecimentos e de um desenvolvimento concebido como valorização e otimização das qualidades humanas;
• políticas: democracia mais direta e mais participativa, abordagem planetária e comunitária dos problemas, governança eletrônica e, num plano mais utópico, democracia direta;
• culturais: criação coletiva, não-separação entre a produção, e liberdade do conhecimento com diminuição das restrições para difusão e interpretação das obras.
Finalmente, a visão de Pierre Lévy parece negligenciar o que Marcuse chamou de véu tecnológico e atribui apenas o caráter libertador da tecnologia. Contudo, isso não implica na ausência de validade do argumento do autor, apenas evidencia uma aproximação com o romantismo outrora clamado por Rousseau. Porém, agora sob uma nova roupagem e que proclama:
“entramos então numa época e que a democracia e o ciberespaço vão gerar-se mutuamente num anel autocriador de que a comunidade científica internacional foi a iniciadora e a primeira beneficiária (uma comunidade científica cuja ética se caracteriza, simultaneamente, pela liberdade de pensamento e pelo entusiasmo cooperativo). (...) Os destinos da democracia e do ciberespaço estão intimamente ligados, pois ambos implicam aquilo que a humanidade tem de mais essencial: a aspiração à liberdade e à potência criativa da inteligência criativa.” (LEVY, 2002, p.32)

O trabalho buscou, até aqui, traçar alguns pontos comuns em três abordagens distintas para a formação, a manutenção e, talvez, o futuro da civilização. Para tanto, percorreu inicialmente noções sobre o modelo contratualista em suas diferentes formas, passou pelo modelo psicológico (intitulado, por convenção, de consciência) e terminou na abordagem com foco na tecnologia. Ao mesmo tempo, procurou estabelecer relações entre as diferentes maneiras de abordar o mesmo tema, sem, é claro, deixar de se posicionar de maneira crítica quando necessário.

Limitações, considerações e proposições

Antes de qualquer consideração é preciso reforçar as intenções desse estudo e que culminaram em algumas escolhas. A possível pouca profundidade na descrição dos pensamentos analisados é de certa forma proposital, por não ser possível, num trabalho desse porte, explorar a grandeza do pensamento de cada autor. Ainda, um estudo teórico como esse pode deixar algumas lacunas na interpretação e que acabam sendo preenchidas pelas concepções de quem o elabora.
No decorrer das três abordagens escolhidas é possível verificar alguma relação acerca dos modos de se observar a civilização. Enquanto a abordagem contratualista parte de um momento fictício, a abordagem psicológica remete à culpa primordial e a abordagem tecnológica às potencialidades estruturais. Tais pontos de vista não se excluem, pelo contrário, se complementam numa crítica que julga as três dimensões. Com base nos relacionamento elaborados no decorrer do texto, é interessante reforçar as semelhanças levantadas sobre as visões de Hobbes e Freud, de Locke e Marcuse e de Rousseau e Lévy.Talvez seja possível classificá-los em pessimistas/totalitários, racionalistas/ideológicos – Locke pela via iluminista e Marcuse pela crítica - e cândidos/revolucionários – Rousseau pela via naturalista e Lévy pela tecnológica.
Com base em alguma busca empírica, é possível observar que o otimismo de Lévy possui mais embasamento que o de seu precursor; isso levanta algumas questões que podem subsidiar futuras pesquisas, como: quais são as diferenças nas relações ocorridas em ambiente digital por que modelos mais humanistas parecem encontrar fundamentações que não existem no ambiente tradicional? Ora, se as pessoas continuam existindo nas pontas da civilização, o único fator que se alterou foi a tecnologia mediando as relações e, além de mediando, excluindo alguns elementos tipicamente agressivos da personalidade humana. Todavia, é apenas uma hipótese e que pode ser aprofundada.
Finalmente, o trabalho parece cumprir seu objetivo de estabelecer o diálogo entre abordagens, aparentemente, tão distintas, elaboradas em diferentes contextos e em diferentes épocas, em correlação à abordagem tecnológica contemporânea.

REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor W. e HORKHEIMER, Max (1985). Dialética do esclarecimento: Fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Zahar.
FREUD, Sigmund (1996A). O futuro de uma ilusão. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago.
FREUD, Sigmund (1996B). O mal-estar na civilização. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago.
HOBBES, Thomas. (2004) Do Cidadão. São Paulo: Editora Martin Claret.
LÉVY, Pierre. (1993) As tecnologias da inteligência. Coleção Trans. Rio de Janeiro: Editora 34.
LÉVY, Pierre. (1996) O que é o virtual? Coleção Trans. São Paulo: Editora 34.
LÉVY, Pierre. (1999) Cibercultura. Coleção Trans. São Paulo: Editora 34.
LÉVY, Pierre. (2002) Ciberdemocracia. Lisboa: Instituto Piaget.
LOCKE, John. (2006) Segundo tratado sobre o governo. São Paulo: Editora Martin Claret.
MARCUSE, Herbert. (1973) Sociedade unidimensional. In: A ideologia da sociedade industrial. Rio de Janeiro: Zahar editores.
MARCUSE, Herbert. (1975) A dialética da civilização. In: Eros e civilização. Rio de Janeiro: Zahar editores.
PIOZZI, Patrizia. (2006) Os arquitetos da ordem anárquica: de Rousseau a Prodhon e Bakunin. São Paulo: Editora UNESP.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. (2006) Do contrato social. São Paulo: Martin Claret.
ROUANET, Sergio P. (1986) Teoria crítica e psicanálise. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Eu da História


Soco para afastar,
Estapeio para indicar,
toco para trazer.

Grito para correr,
gemo para prazer,
desenho para repetir.

Falo para persuadir,
escrevo para inexaurir,
historio para afirmar.

Afirmam que não historiei,
escrevem que exauri,
falam que persuadi.

Desenham para mudar,
gemem para sublimar,
gritam para viver.

Tocam o que fiz,
estapeiam para mostrar,
socam para libertar.

E se libertos,
faço novamente.

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quinta-feira, 10 de junho de 2010

Sonhos nu-los



Me olhou aquela calça,
diminui para pô-la,

Me olhou aquela blusa,
aumentei para pô-la.

Me olhou aquele carro,
alienei para pô-lo.

Me olharam aqueles todos,
ajustei para sê-lo.

Me olharam aqueles sonhos,
fi-los nu-los.

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terça-feira, 8 de junho de 2010

Elogio à mentira



Dizem que mente,
descarada, mente.
Dizem que é hipócrita,
hipócrita, mente.
Dizem que dissimula,
dissimulada, mente.
Mas, assim, dizem que é sincera,
e sincera, mente.
Sinceramente,
hipócrita mente,
dissimulada mente,
sincera não mente.
Sincera mente!
Sempre mente,
só não mente quem não sente,
que a mente é cultura que mente.
Menos a mente que,
diminuta mente,
porque nada sente,
apenas o que se mentem.


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Estação Barra Funda



A marcha da massa se traça na força da angústia do dia que passa.

A moça aguarda no caminho da massa,
que olha a graça,
mas não perde a forma.

Segue pela rampa,
na marcha,
a espera da próxima graça,
que, não demora, passa.

Mas a massa não ultrapassa o limite da marcha.

Acompanha a graça da moça quando a imagem embaça,
embaralha na massa.

Permanece no caminho da casa,
num gozo em massa que sonha:
o sexo e a graça,
sob a rigidez do dia que passa.

E goza sem massa na flacidez da casa,
onde a vida não se forma,
o gozo não se traça
e a doença se conforma,
numa vida sem graça.


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